O CICLO EXISTENCIAL
(Capitulo do livro: Yôga, Sámkhya e Tantra)
O hinduísmo apresenta-nos um conceito chamado dúhkha traya, que significa, o triplo infortúnio existencial. Isso diz respeito a uma tomada de consciência de que estamos todos presos no ciclo existencial, o samsára,
cujo movimento não tem fim. Vejamos como o Sámkhya analisa essa
“miséria existencial”, que possui três raízes ou causas principais.
A primeira raiz se
encontra na relação do ser humano com seus semelhantes. Cada um sofre,
em maior ou menor grau, de algum tipo de carência, seja física,
emocional ou mental. Também cada um precisa competir por melhores
posições na sociedade e, por isso, tem de se condicionar aos costumes e
regras estabelecidos pelo dharma (lei humana ou social), na maioria das
vezes, não pertinente com o âmago da natureza.
A segunda causa se
acha na relação do indivíduo com outros seres da natureza, tais como os
animais selvagens e os microorganismos desconhecidos que lhe trazem
enfermidades e morte prematura. Ainda, muitas vezes, é a nossa própria
sociedade que se permite desenvolver novas bactérias e vírus, dando
origem a doenças cada vez mais sofisticadas.
Já a terceira raiz
é a relação do homem com as forças da natureza (o homem está sempre
infeliz, ora queixando-se do calor, ora do frio, ora da chuva, etc).
Ainda pode acontecer uma seca intensa, uma enchente, um terremoto, um
furacão, enfim, os grandes cataclismas do planeta.
Evidentemente,
existem meios específicos para contornar todas as situações;
principalmente, em função do rápido avanço tecnológico e científico que
traz mais conforto e uma maior expectativa de vida. Entretanto, os
problemas continuarão a
surgir, soluções aparecerão e novas questões virão (antes, a peste;
depois, o câncer; aids e, amanhã, o que mais será?).
Por outro lado,
temos ainda as propostas das religiões ou também de um estado
político-social organizado. Conceitos e paradigmas nos vão sendo
impostos por uma cultura que, na maioria das vezes, castra nossas
maiores possibilidades. Quando observada de um outro ângulo, a
esperança proporcionada pelo acreditar, seja na justiça divina, seja na
ordem social, apenas nos permite orbitar na periferia.
A maioria desses
caminhos são considerados simplórios e não passam de um remédio
paliativo de breve validade. É como se apenas podássemos os galhos de
uma árvore. Ela continuará de pé, sustentada pelas suas raízes, de onde
partirão novos ramos e flores, cujos frutos um dia retornarão à terra,
cujas sementes produzirão novas árvores... E é a terra que fornece o
alimento mas também o que aprisiona o homem ao eterno movimento cíclico
da Natureza. Dentro de uma roda que não pára de girar, somos arrastados
ora para cima, ora para baixo, num jogo interminável.
A paz e a
tranqüilidade nada mais são do que a lacuna entre os conflitos e o
sofrimento. A segurança e a riqueza andam numa corda-bamba; e num
instante se está feliz, noutro, infeliz. Seja quem for, faça o que
fizer, tenha o que tiver, todos os homens estarão insatisfeitos. Todos
trazem em si uma espécie de inquietação e de agitação internas causadas
pelo ciclo perpétuo da Natureza.
A intensidade
dessas sensações é proporcional ao plano de existência em que esteja
cada indivíduo. Às criaturas chamadas inferiores, nada disso tem razão
de ser, por exemplo, uma planta, um inseto ou um cão, que amoldam-se ao
seu meio natural. Mas quer sejam seres racionais, quer sejam
irracionais, o fato é que todos estamos juntos nas cadeias do nascimento
e da morte, aprisionados pelo samsára, o ciclo existencial.
Pátañjali escreve no Yôga Sútra (cap.
II: vers. 12-15): “O karma tem suas raízes nos obstáculos e é
experimentado tanto no nascimento objetivo quanto subjetivo.
Permanecendo a existência das raízes, permanecem as conseqüências
(kármicas) que vão determinar tudo: o nascimento, a própria vida e as
suas experiências. Estas produzem alegria ou dor, conforme sua causa
seja virtude ou vício. Para o discriminativo, tudo provoca a dor, seja
devido à antecipação do sentimento de perda, ou a novos desejos
produzidos pelos samskáras, ou ainda, a conflitos entre os gunas.”
Imaginemos um
homem como um grão de areia se comparado à Terra, a qual nada mais é do
que um ponto no sistema solar. Esse, por sua vez, é ínfimo dentro da
via-láctea, que também não passa de um minúsculo ponto em relação ao
aglomerado de galáxias; assim, ad infinitum. Para cada um desses elementos é atribuído um período de vida, desde uma molécula até uma estrela.
Os darshanas, as
escolas de filosofia hindu, tentam uma saída para o movimento incessante
da roda existencial, cujas experiências e vivências estão condicionadas
ao tempo e cujas transformações estão limitadas ao espaço.
Gaudapáda, ao comentar o Sámkhya Kariká (vers.II),
diz: “Numerosos milhares de Indras (uma das primeiras divindades
arianas), de era para era, com o tempo desaparecem, pois o tempo é
invencível”. Assim, seja através de uma árvore centenária, de um inseto
que vive alguns meses ou de uma galáxia de trilhões de anos, nossas
percepções habituais estão lacradas pelo tempo e pelo espaço.
Em relação ao
homem, a forma como ele se apresenta, com sua personalidade distinta,
com seus desejos particulares ou coletivos, com suas tendências
genéticas, instintivas, emocionais e mentais, tudo isso está incluso
nessa mesma esfera sem saída, dentro da qual tudo se desenvolve, se
desfaz e se transforma.
Para que
compreendamos nosso ciclo existencial e, consequentemente, procuremos
uma saída para esse drama cósmico, haveremos de começar a nos desapegar
(ou nos desprender) de máyá. Máyá, que significa ilusão, é onde atuam os
pares de opostos, tais como: bem e mal, belo e feio, dia e noite, certo
e errado, homem e mulher, alegria e tristeza, prazer e dor, etc.
Aqui, observada
sob nosso parâmetro humano, toda dualidade é uma realidade. Porém,
quando a dualidade é vista de um outro ângulo, tudo aquilo que aos
nossos olhos humanos aparece como polos distantes, na verdade, são
pontos de um mesmo extremo!
Na Bíblia
(Gênesis, II: 8-17) está escrito: “E o Senhor Deus tinha produzido da
terra todo tipo de árvores formosas e de frutos doces para comer; e
havia também a árvore da vida no meio do paraíso, e a árvore da ciência
do bem e do mal... E, deu- lhe este preceito, dizendo: ‘coma os frutos
de todas as árvores do Paraíso, mas não comas do fruto da árvore da
ciência do bem e do mal’.” (Aqui não há nenhuma menção à maçã criada pelo folclore. E, na verdade, tal árvore representa o conhecimento do bem e do mal, ou seja, a dualidade, o grande pecado do homem). No Dhammapáda,
escritura clássica do budismo, é atribuída ao Buda a seguinte frase:
“Aquele que venceu as cadeias do mal, mas também venceu as cadeias do
bem, lhe chamo eu, Brahmane.” Assim, essas duas obras, de tradições
diferentes, dizem respeito à transcendência dos opostos, na qual o
indivíduo deve ser, simplesmente, como a Natureza o criou.
Finalizando,
existem três maneiras para enfrentar o ciclo existencial: uma resignação
consciente, um caminho de saída, ou ainda, uma conciliação entre as
duas opções. A partir do momento em que compreendemos as leis e os
mecanismos que regem a Natureza teremos mais acesso à libertação e,
enfim, poderemos retornar ao paraíso".
Santos, Sérgio L. H. 2.003 - Yôga, Sámkhya e Tantra/Sérgio Santos - São Paulo: